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De certezas e incertezas

 

O esgoto transbordante com que o povo brasileiro convive desde o começo da Lava-Jato não para de jorrar. Por pior que seja a sensação cotidiana de desgosto e nojo, a gravação do presidente Temer, apanhado em conversas estarrecedoras com o empresário Joesley Batista, e a desfaçatez de Aécio Neves, pedindo propina do mesmo empresário e oferecendo em troca diretorias da Vale, dão a dimensão do profilático trabalho de purga que a operação Lava-Jato vem fazendo. Na semana passada, foi a vez de Lula e Dilma serem desmascarados pelos marqueteiros que inventaram suas máscaras.

Não fosse o nível rasteiro do que está em jogo — roubalheiras e mentiras —, a morte política de personagens centrais dos últimos governos lembraria o desfecho das tragédias. Aqui é só o enredo de um folhetim político-policial com bandidos em todos os partidos, atirando uns nos outros, mas trabalhando todos, cúmplices, para sabotar a Lava-Jato. O que desde logo desmente as acusações de parcialidade que lhe imputavam as vozes raivosas do PT.

Vira-se uma página da história contemporânea que, melancólica, termina com o sistema político caindo de podre. Que futuro ainda é possível para um país massacrado por crise econômica e acefalia política? 

Temer escolheu não renunciar. Mais cedo ou mais tarde, será destituído pelo TSE ou em um processo de impeachment. Seu governo tornou-se inviável e agoniza. A base parlamentar se esfacela. Ele nega as acusações. Não convence. Se se agarrar à cadeira presidencial, provocará uma crescente exacerbação da população que já lhe perdeu o respeito. Mexerá em vespeiro.

Em meio às incertezas, algumas certezas. A Constituição deve ter a primeira e última palavra, e a sua defesa caberá sempre ao Supremo Tribunal Federal. O funcionamento das instituições democráticas deve ser garantido impedindo que pescadores de águas turvas se insinuem como salvadores da pátria. Seria uma trágica ironia da história se todo esse esforço de moralização da vida pública desembocasse na ascensão de demagogos e corruptos.

No horizonte, acumulam-se interrogações e riscos. Na hipótese de eleições indiretas para substituir Temer, como previsto na Constituição, o presidente da Câmara ou, na ausência dele, o do Senado, ambos comprometidos na Lava-Jato, teriam legitimidade moral para assumir interinamente a Presidência e comandar o processo de eleição do novo presidente? Não seria mais indicado que a ministra Cármen Lúcia, presidente do Supremo Tribunal Federal, de indiscutível honorabilidade, assumisse essas funções? 

A honorabilidade deve se tornar uma exigência incontornável para ocupar cargos de comando do país. Uma vida pública sem máculas seria, no caso de eleições indiretas, o requisito primeiro para a escolha de um candidato ou candidata tanto quanto possível consensual. O espírito da Lei da Ficha Limpa deveria ser rigorosamente invocado na legitimação de candidatos a todo e qualquer cargo público, sobretudo a chefia do Poder Executivo. 

Em situações normais, eleições diretas seriam o caminho mais apropriado para refundar o país. Porque é disto que se trata, refundar o Brasil. Mas não estamos vivendo tempos normais. O país foi saqueado. A Lava-Jato ainda não chegou ao fim de seu trabalho de erradicação da corrupção. A prova é que, como agora, descobrimos, pasmos, que crimes continuam sendo cometidos por políticos que não se arrependem, reincidem, têm uma fé cega na impunidade.

O que está em jogo é um embate decisivo entre o sucesso da Lava-Jato com a punição dos culpados e o risco de volta ao poder daqueles que, por palavras e atos, minaram a democracia até quase destruí-la. O tempo da Justiça pode não coincidir com o da política. 

Duzentos e oito milhões de habitantes, vivendo em um gigantesco território, donos de bens naturais inestimáveis como a Amazônia e bacias hidrográficas de dar inveja a um mundo assombrado pela carência de água e de ar puro, com capacidade empresarial para construir a Petrobras e reconstruí-la depois de um assalto demolidor. Assim é o Brasil. Um povo que ganha honestamente a sua vida, uma cultura mestiça, que dá lições de diversidade a quem não suporta um vizinho estrangeiro. 

Não somos um país de corruptos, somos um país em que, durante décadas, os governantes se venderam e nos venderam a umas poucas gigantescas empresas que, na sombra, governavam, pervertiam o Estado e a política, cresciam como parasitas, sugando os recursos públicos. A essa devastação, sobrevivemos. O Brasil é maior do que a crise, essa é a maior certeza. 

O Globo, 20/05/2017